CARLOS
RODRIGUES BRANDÃO
EDUCAÇÃO?
EDUCAÇÕES: APRENDER COM O ÍNDIO
Pergunto
coisas ao buriti; e o que ele responde é a coragem minha. Buriti quer todo o
azul, e não se aparta de sua água - carece de espelho. Mestre não é quem sempre
ensina, mas quem de repente aprende.
João
Guimarães Rosa / Grande Sertão: Veredas
Ninguém
escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de
muitos todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para
ensinar, para aprender e ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para
conviver, todos os dias misturamos a vida com a educação. Com uma ou com
várias: educação? Educações. E já que pelo menos por isso sempre achamos que
temos alguma coisa a dizer sobre a educação que nos invade a vida, por que não
começar a pensar sobre ela com o que uns índios uma vez escreveram?
Há
muitos anos nos Estados Unidos, Virgínia e Maryland assinaram um tratado de paz
com os índios das Seis Nações. Ora, como as promessas e os símbolos da educação
sempre foram muito adequados a momentos solenes como aquele, logo depois os
seus governantes mandaram cartas aos índios para que enviassem alguns de seus jovens
às escolas dos brancos. Os chefes responderam agradecendo e recusando. A carta
acabou conhecida porque alguns anos mais tarde Benjamin Franklin adotou o
costume de divulgá-la aqui e ali. Eis o trecho que nos interessa:
"...
nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para nós e
agradecemos de todo o coração.
Mas
aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções
diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao
saber que a vossa ideia de educação não é a mesma que a nossa.... Muitos dos
nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda
a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam para nós, eles eram maus corredores,
ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não
sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a
nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam
como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros. Ficamos extremamente
agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a
nossa gratidão oferecemos aos nobres senhores de Virgínia que nos enviem alguns
dos seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos, deles,
homens."
De
tudo o que se discute hoje sobre a educação, algumas das questões entre as mais
importantes estão escritas nesta carta de índios. Não há uma forma única nem um
único modelo de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e
talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o
professor profissional não é o seu único praticante.
Em
mundos diversos a educação existe diferente: em pequenas sociedades tribais de
povos caçadores, agricultores ou pastores nômades; em sociedades camponesas, em
países desenvolvidos e industrializados; em mundos sociais sem classes, de
classes, com este ou aquele tipo de conflito entre as suas classes; em tipos de
sociedades e culturas sem Estado, com um Estado em formação ou com ele
consolidado entre e sobre as pessoas.
Existe
a educação de cada categoria de sujeitos de um povo; ela existe em cada povo,
ou entre povos que se encontram. Existe entre povos que submetem e dominam
outros povos, usando a educação como um recurso a mais de sua dominância. Da família
à comunidade, a educação existe difusa em todos os mundos sociais, entre as
incontáveis práticas dos mistérios do aprender; primeiro sem classes de alunos,
sem livros e sem professores especialistas; mais adiante com escolas, salas,
professores e métodos pedagógicos.
A
educação pode existir livre e, entre todos, pode ser uma das maneiras que as
pessoas criam para tornar comum, como saber, como ideia, como crença, aquilo
que é comunitário como bem, como trabalho ou como vida. Ela pode existir
imposta por um sistema centralizado de poder, que usa o saber e o controle
sobre o saber como armas que reforçam a desigualdade entre os homens, na
divisão dos bens, do trabalho, dos direitos e dos símbolos.
A
educação é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a
criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua
sociedade. Formas de educação que produzem e praticam, para que elas
reproduzam, entre todos os que ensinam e aprendem, o saber que atravessa as
palavras da tribo, os códigos sociais de conduta, as regras do trabalho, os
segredos da arte ou da religião, do artesanato ou da tecnologia que qualquer
povo precisa para reinventar, todos os dias, a vida do grupo e a de cada um de
seus sujeitos, através de trocas sem fim com a natureza e entre os homens,
trocas que existem dentro do mundo social onde a própria educação habita, e
desde onde ajuda a explicar - às vezes a ocultar, às vezes a inculcar - de
geração em geração, a necessidade da existência de sua ordem.
Por
isso mesmo - e os índios sabiam - a educação do colonizador, que contém o saber
de seu modo de vida e ajuda a confirmar a aparente legalidade de seus atos de
domínio, na verdade não serve para ser a educação do colonizado. Não serve e
existe contra uma educação que ele, não obstante dominado, também possui como
um dos seus recursos, em seu mundo, dentro de sua cultura.
Assim,
quando são necessários guerreiros ou burocratas, a educação é um dos meios de
que os homens lançam mão para criar guerreiros ou burocratas. Ela ajuda a
pensar tipos de homens. Mais do que isso, ela ajuda a criá-los, através de
passar de uns para os outros o saber que os constitui e legitima. Mais ainda, a
educação participa do processo de produção de crenças e ideias, de
qualificações e especialidades que envolvem as trocas de símbolos, bens e
poderes que, em conjunto, constroem tipos de sociedades. E esta é a sua força.
No
entanto, pensando às vezes que age por si próprio, livre e em nome de todos, o
educador imagina que serve ao saber e a quem ensina, mas, na verdade, ele pode
estar servindo a quem o constituiu professor, a fim de usá-lo, e ao seu
trabalho, para os usos escusos que ocultam também na educação - nas suas
agências, suas práticas e nas ideias que ela professa - interesses políticos
impostos sobre ela e, através de seu exercício, à sociedade que habita. E esta
é a sua fraqueza.
Aqui
e ali será preciso voltar a estas ideias, e elas podem ser como que um roteiro
daqui para a frente. A Educação existe no imaginário das pessoas e na ideologia
dos grupos sociais e, ali, sempre
se espera, de dentro, ou sempre se diz para fora, que a sua missão e
transformar sujeitos e mundos em alguma coisa melhor, de acordo com as imagens
que se tem de uns e outros: "... e deles faremos homens". Mas, na prática,
a mesma educação que ensina pode deseducar, e pode correr o risco de fazer o
contrário do que pensa que faz, ou do que inventa que pode fazer: "...
eles eram, portanto, totalmente inúteis"